Noite passada choveu por um bom tempo. Chuva fina mas persistente. Ao nascer do sol, já tinha estiado, mas o céu estava cinzento e pesado de nuvens, o chão ainda molhado, começando a secar. Saí cedo, um pouco antes das 7:30h, e desci para a praça para ver Jesus na sua redoma, antes de tomar o caminho para Passa Quatro. É heresia dizer que é piegas? Cafona?

Por falar em irreverências, começo dizendo que o dia de hoje foi curto e grosso: só trinta e poucos quilômetros, com quase 900m de ganho acumulado de elevação (veja os dados técnicos nos links ao final). É que eu precisava vencer a muralha da Mantiqueira, subindo a Garganta do Embaú, para entrar em grande estilo em Minas Gerais.

Peguei a rua principal (quase única) da Vila do Embaú e, passando pelo mercadinho, logo na esquina seguinte, já saí da zona urbana, passando de asfalto a estrada de chão. Aí, pelos primeiros dois quilômetros, alternavam-se matos, pequenas chácaras e pastos. Então, ao chegar aos 2,5 km, havia uma planta de energia solar e tudo o mais que se via era aquela desolação de morros pelados, até que, menos de um quilômetro depois, apareceu uma cena que resumia minhas primeiras impressões gerais, condensadas num arrozal desativado e seco.

Com quatro quilômetros, a estrada terminou numa outra, asfaltada, que peguei à esquerda (costume, sabe?), e logo passei por uma bela fazenda.

Fazenda com lago defronte à sede

A manhã estava agradável, apesar da falta do sol, e havia um ou outro passante, inclusive um senhor que empurrava sua bicicleta, apesar da subida ser bem suave. Como eu havia parado para fotografar um casal que vinha no outro sentido e o cumprimentei, não escapei da prosa. Ele comentou que estava com um problema na coluna e não conseguia pedalar nas subidas. Vieram as perguntas usuais e inevitáveis, respondidas adequadamente e, no final, fui convidado para tomar leite tirado na hora e café com bolinhos. Mais uma vez, declinei, no pretexto da serra me esperando, e segui. Povo simpático este. Será que sou muito arredio?

Casal aproveitando a manhã

Um pouco antes de completar seis quilômetros, virei à direita para outra estrada, que indicava o destino Passa Vinte. Ainda asfalto. Segui, logo encontrando um sítio com horta e um grupo de garças descansando na galhada das árvores adjacentes.

Sítio produtor de hortaliças com garças

Um pouco depois, comecei a ouvir o murmúrio característico de tucanos, que não tardei a localizar. Era um grupo de quatro aves do tipo tucanaçu revoando entre as galhadas de grandes eucaliptos. Apesar da altura em que se encontravam, consegui registrar um deles. O dia, aparentemente, prometia bem, no setor de pássaros.

Tucanaçu pousado num alto ramo de eucalipto

Era uma estrada sinuosa, seguindo o caminho do rio Passa Vinte, com muitas matas, charmosa. Algumas chácaras exibiam as tradicionais cercas de taquara, que me trazem boas recordações da primeira infância, de coisas do interior.

Chácara com cerca de taquara, estrada para Passa Vinte

Seguindo adiante, logo vi que a vocação passarinhística do dia, como diria o Rosa, se confirmava. Numa árvore desfolhada, pouco distante da margem da estrada, avistei dois Jacus grandes. Registrei um.

Jacu

Em ritmo de passeio, com tantas atrações a me distrair, foi só às 8:42h que cheguei à rodovia SP-052, que leva a Passa Quatro. Meu GPS registrava 9,4 km percorridos, com elevação acumulada de apenas 114m. Agora é que ia, de fato, começar a subir. Primeiro pela rodovia e depois pela Estrada Velha, ou Estrada do Cruzeiro, alguns dos nomes que, ao longo do tempo, foram dados ao trecho da Estrada Real que faz, em terra, a subida principal da Garganta do Embaú, principal passo de acesso às terras altas da Mantiqueira e do caminho de São Paulo para o sul do estado de Minas Gerais.

Confluência da Estrada de Passa Vinte com a rodovia SP-052

Subindo pela rodovia, logo alcancei o local onde deveria haver a tal Pousada Pedra Branca, mas há apenas um restaurante.

Restaurante Casarão

Aqui, com um pouco mais de 11km percorridos, eu havia escalado moderados 147m. Daí em diante, entretanto, mesmo o curso da rodovia vai se tornando pouco a pouco mais íngreme, resultando em que, ao entrar no trecho em terra, na marca de 14 km, eu já atingia 246m de elevação.

De acordo com minha rota, deviam faltar por volta de 20km para Passa Quatro, de modo que era bom momento para fazer uma parada de descanso e hidratação. Entretanto, no início da estrada de terra, havia uma multidão de cães, de todos os tipos, tamanhos e cores, que não paravam de latir. Fui, então, subindo, em busca de local mais tranquilo para parar, que encontrei algumas centenas de metros adiante, ao abrigo de um bambuzal.

Após descanso, água e um envelope de carboidratos, recomecei a subida e, em pouco tempo, cravei os 300m de elevação ao chegar à entrada de uma fazenda, em meio a um bosque de eucaliptos.

Mais acima, fiz as honras à vocação do dia e flagrei um belo anu preto, descansando num galho de arbusto seco.

Anu preto

Até aí, eu tinha cumprido 16,2km, com 333m de acumulado de elevação, mais de um terço do esperado para hoje. Podia ver, claramente, um grande progresso no condicionamento cárdio-vascular, considerando os poucos dias de viagem. Seguindo deste ponto até a marca de 17km, sempre subindo, meu frequencímetro não tinha registrado frequência maior que 140bpm e, como eu veria depois, não ultrapassaria os 151bpm no restante do dia, um comportamento excepcional, considerando os números da primeira subida de serra, de Paraty a Cunha.

Em meio à tantas subidas, os panoramas iam se sucedendo. Se, num ponto, se viam as serras adjacentes, mostrando um visível corte de morro que denuncia a presença da linha férrea, desativada, que ligava Passa Quatro a Cruzeiro, logo em seguida aparecia uma casinha, uma mata bonita, uma planta em flor.

Corte no morro, marcando o traçado da desativada ferrovia
Entrada de chácara, em meio à mata fechada
Buganvília

Assim, pedalando, às vezes com dificuldade, e sempre subindo, cheguei aos 18km de percurso totalizando 460m de ganho acumulado de elevação, quando a estradinha, agora tornada em trilha, empinou.

Hora de empurrar a bike e multiplicar, rapidamente, os metros de elevação. Ao ponto em que o acumulado chegou a 477m, havia esta “ladeirinha”, que mais parecia uma escada. Se você sobe escadas de bike, vá em frente pedalando. Eu empurro.

De tempos em tempos, havia algum pequeno patamar, uma diminuição no aclive ou uma passagem de riacho. Sempre era um convite para dar uma parada e retomar o fôlego. Numa destas, vi um cãozinho parado, que parecia esperar que alguma banana, do cacho que pendia bem acima, madurasse e caísse ao chão. Haja vontade de comer banana!

O cãozinho e a bananeira

Por falar em frutas, mais adiante havia uma jabuticabeira magnífica, que a julgar pelo tronco, deve ter dezenas de anos de idade.

Jabuticabeira

Ao parar neste local, comecei a ouvir uma gritaria de tucanos. Não consegui fotografa-los porque se escondiam na mais alta copa das árvores. Mas, devia ser um grupo numeroso, tamanha a algazarra. Se você não conhece a voz dos tucanos, procure uma gravação (eu gravei um pouco, mas não sei como incluir áudio no blog). É muito curioso.

Nesse meio tempo, completei 18km. O GPS marcava 536m de acumulado vertical e eu passava pelo riacho onde encontrei um grupo de caminhantes, na vez anterior em que passei por aqui (descendo).

Riacho e subida

Um pouco mais acima (583m), a trilha se alarga um pouco e, no local onde há uma casinha branca, torna-se, outra vez, estrada. Mas, veja bem, estrada para 4×4 ou ciclistas malucos, somente.

Aos 600m de subida, cruzei a linha férrea e continuei subindo.

E aí, em sequência, foram vindo árvores enormes e um pequeno canarinho que insistia em afugentar um rival, que era apenas sua própria imagem, no retrovisor de uma picape.

Os 19km se completaram na passagem por mais um riacho. Verifiquei a elevação acumulada: 642m.

Menos de um quilômetro depois, o total de ascensão já contava 720m e subindo. A esta altura, já estava no mesmo nível das nuvens, que na forma de neblina davam um certo ar fantasmagórico a tudo.

Às 11:37h, cheguei ao passo do Embaú. Após 20,2km e 763m de elevação, o paredão da Mantiqueira estava vencido!

Daí em diante, trechos curtos de rodovia e maioria de estradão nos levariam, em franca predominância de descidas, ao centro de Passa Quatro.

Destes terrenos bem conhecidos, de muitas passagens e inúmeros pedais, fui passando como quem visita velhos amigos, de quem a vida nos afastou por um tempo.

Destaques dessa passagem, o casario pobre, à beira da estrada; as passagens pela linha do trem, em número de quatro, como não poderia deixar de ser, por aqui; a estação ferroviária Manacá; a chegada da incrível descida da estrada Pinheirinhos-Itaguaré.

Primeiro cruzamento da linha férrea
Segundo cruzamento da linha férrea
Terceiro cruzamento da linha férrea
Quarto cruzamento da linha férrea
Estação Manacá
Chegada da estrada Pinheirinhos-Itaguaré

Depois, percorri a nova e simpática ciclovia de Passa Quatro e parei no restaurante Villa Comini, para comer a deliciosa truta com amêndoas que lá servem.

No final, ao chegar à pousada, contabilizei:

  • 33 km percorridos
  • 858 m de elevação acumulada

E, além de tudo, a satisfação de ter vencido a Garganta do Embaú e mais a surpresa de verificar uma frequência cardíaca média, num exercício tão intenso, de apenas 113bpm.

Dados técnicos do pedal

Pedalada no Strava

Pedalada no Garmin Connect

Pedalada no RideWithGps

Um comentário sobre “ER+RI 04 Vila do Embaú a Passa Quatro

  1. Adorei! Mt interessante, mt bem escrito!!! Me senti pedalando junto. Adorei ver os pássaros, a mata… fiquei triste com o desmatamento, o mal uso da terra! Sobre o Cristo na redoma, considero pop arte, pitoresco, singelo. Espero o próximo!

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